SOBRE A FANTASIA DE CARNAVAL E COMO O AMOR NÃO NOS LIVRA DOS EQUÍVOCOS
10/02/2016
A adoção é um ato de amor. No Brasil, país onde, de acordo com o Senado Federal, mais de 60% das crianças a espera na fila de adoção, são crianças negras, em especial meninos negros acima dos dois anos de idade, adotar uma criança negra é um ato de amor ainda maior e merece ser reconhecido como tal.
Nos últimos dias, as redes sociais foram tomadas de postagens contrárias e favoráveis a um casal de pais adotivos que decidiu pular o carnaval vestidos como Aladin e Jasmine, os personagens do desenho Disney Aladin, levando juntos seu pequeno filho para curtir a folia, como tantos outros pais fazem nos carnavais de rua por todo o Brasil. Não haveria ato mais sublime e carinhoso se não fosse o fato de eles terem vestido seu filho como o personagem Abu, o pequeno macaco que acompanha Aladin em suas aventuras.
Ao perceber a indignação de manifestantes negros que se revoltaram com o ato impensado, o pai, Fernando Bustamante criou uma postagem pública em sua conta no Facebook, se desculpando por ter ofendido alguém e dizendo o quanto ama o seu filho e afirmando que não viu Abu como um macaco, mas como o melhor amigo de Aladin e que assim com essa ternura quis representar seu filho. Após nova enxurrada de protestos, dessa vez em proporções internacionais com sites franceses e americanos repercutindo o assunto, o pai volta a se pronunciar e em sua página do Facebook, em um texto onde narra a insônia que o acomete em meio a mensagens de "ódio" e "amor" que tem recebido e questiona o que realmente motivou a comoção pública, se o fato de ele ser branco, se o fato do menino ser negro, se ambos, ou se uma falta do que ela chama de "idealismo utópico". Em outras palavras, ele, ainda não consegue ver a gravidade da ação.
Mas qual a gravidade real da ação cometida por Fernando?
No desenho Aladin, ao contrário de outras fábulas infantis onde animais são representados com características emocionais e físicas de seres humanos, o personagem Abu não é representado como nada, além daquilo que é realmente visto na tela, um pequeno macaco. Abu não tem falas, Abu rouba objetos, Abu em determinados momentos é enjaulado, enfim Abu não é um macaco representando uma criança, um amigo ou um ato de amor, Abu é apenas um macaco. Surgem então as próximas dúvidas de Fernando e das demais pessoas que não entenderam a polêmica. Qual o problema em vestir uma pessoa negra de macaco? O que seria diferente se o menino vestido como Abu fosse branco?
Para encontrar a resposta para essas perguntas é necessário viajar no tempo e retornar ao século XIX e entender o que é o racismo científico, de acordo com o Prof. Dr. Kabengele Munanga, em seu texto Uma abordagem conceitual das noções de "Raça, Racismo, Identidade e Etnia", ainda entre os séculos XVI e XVII o conceito de raça passa a ser usado para exemplificar a "diversidade humana", de acordo com o autor "o conceito de raças puras" "foi transportado da botânica e da zoologia para legitimar as relações de dominação e de sujeição entre classes sociais", posteriormente o conceito foi aplicado para entender a diferença entre povos de diferentes raças baseados em suas características físicas.
Durante o século XIX essas definições se somam a teoria Darwinista de evolução das espécies e de forma deturpada gera o chamado Darwinismo Social, onde as características físicas de diferentes povos da humanidade eram vistas como traços que demonstravam quão perto esses povos estariam de serem considerados seres humanos. No caso, no topo da cadeia evolutiva estaria o homem branco, um ser evoluído e completo e no início desta cadeia, mais próximo dos animais, estaria o homem negro, quase em um estágio primata, comparado apenas ao macaco. Para exemplificar esse pensamento racista, eram usados como justificativas as medidas do cérebro e das características físicas como mãos, pés e cabeça. Assim, passou-se a acreditar que seres humanos negros eram o mais próximo na teoria evolutiva dos macacos. Esses seres humanos passaram a ser então, investigados, objetificados, enjaulados em zoológicos humanos, tudo justificado por sua ausência de humanidade.
É um fato conhecido, a maneira como discursos acadêmicos e científicos se tornam conceitos indiscutíveis e se embrenham na realidade da sociedade, dessa forma a partir daquele momento, apelidar negros como animais, em especial como macacos se tornou algo comum na realidade da sociedade mundial e dessa forma foi transmitido de geração em geração. Dessa maneira, é possível encontrar em toda a diáspora africana a mesma nomenclatura para ofender negros, seja macaco no Brasil, macaquito na América Latina ou Jigaboo nos Estados Unidos, todas as expressões tem o mesmo sentido, desumanizar negros como forma de ofensa racista. Por isso, a conotação e o peso por trás da palavra seriam completamente diferentes se a criança fosse um menino branco.
Isso significa que Fernando não ama seu filho? Não, ao contrário Fernando com certeza teve amor o bastante para escolher seu filho, para desejar aquela criança e amá-lo com todo o amor que pais que desejam filhos, sejam eles biológicos ou não, podem ter. Contudo, mesmo pessoas que amam incondicionalmente, até mesmo os pais cometem equívocos.
Ativista do movimento negro, Beatriz Caixeta é conhecida por suas postagens críticas na internet com relação a atos de racismo. Adotada ainda na infância por uma família branca, a ativista diz se sentir chocada com a imagem divulgada na internet, em especial pela falta de compreensão dos pais que em sua perspectiva não compreenderam a gravidade de reforçar um estereótipo que atinge apenas a população negra.
"Eu como filha adotiva tenho certeza que eles não fizeram com esse propósito ao estereotipar a criança. Minha família nunca quis que eu fosse a macaca ou a empregada, ou a negrinha, ou a que se sujou no mato, como eles se referiam quando perguntavam porque eu era 'mais escura' do que eles. Minha família me ama, mas é branca. E eu sofri duas vezes... Por ser negra e por ser criada por eles, mesmo tendo todos os privilégios que a branquitude deles me deu. Eles são brancos. Vivem numa sociedade (aqui na minha cidade) só de brancos, não tem nenhuma ou pouca relação com Negros e portanto não sabem como o racismo nos afeta. Tudo sempre foi uma Brincadeira. E eu levei assim até me descobrir negra."
Para Beatriz, ainda que a atitude seja indefensável, é preciso compreender as relações raciais entre pais de outras etnias e filhos adotivos negros. "Meus pais tem culpa? Não. Minha família tem culpa? Não. A sociedade tem culpa. E lógico que indiretamente eles também. O meu discurso aqui pode até parecer que eu os estou defendendo, mas não estou. O meio em que eles estão inseridos é esse, branco. Como vão saber lidar com o racismo?". Questiona Bea. A afirmação de Bea traduz a incompreensão apresentada por Fernando. Ele não conseguiu entender o racismo por trás de sua atitude, porque como homem branco, nunca sofreu racismo, e ninguém nunca tentou retirar sua humanidade o comparando com o animal. A Fernando ninguém nunca atirou bananas, nem chamou de macaco durante uma partida de futebol.
Contudo, como menino negro que se tornará um jovem e um homem negro, o filho de Fernando, possivelmente irá sofrer racismo, muitas vezes com esse mesmo insulto, diversas e diversas vezes em sua vida, afinal homens e mulheres negras são ofendidos dessa forma diariamente. A ação de Fernando ainda que inconscientemente reforça esse estereótipo e legitima a atitude que muitos racistas podem vir a ter com seu filho no futuro. Ela também, ajuda a criar problemas na autoestima da criança que desde cedo pode se sentir inferiorizado pela cor da sua pele, pela maneira como é tratado e percebido em uma sociedade racista e excludente.
"A gente que é adotada não tem uma identidade bem formulada. Menos ainda quando são famílias de outras etnias e menos ainda quando a sociedade não quer nem que a gente viva, quem dirá que sejamos amados e queridos por quem deveria nos matar.", afirma Bea.
Apesar de preocupada com a ação impensada do casal, a ativista demonstra preocupação ainda com a atitude de alguns militantes que prefeririam usar de agressividade para com a família, o que segundo ela, pode fazer o efeito contrário ao desejado. "Fiquei bem reflexiva também em relação a como o movimento negro tem abordado esses temas com essas pessoas, de forma violenta, o que faz com que essas pessoas mais se afastem do que se unam. Não estou dizendo que essas questões não devem ser enfatizadas, mas há uma forma mais adequada de se fazer", afirma Bea.
Ao ser questionada sobre qual seria a melhor forma de orientação para pais adotivos de crianças negras, Bea afirma acreditar que possivelmente a curto prazo, um curso de orientação pudesse ajudar nessa construção, mas que talvez isso possa criar novos empecilhos no sistema de adoções. Para a ativista a solução é continuar na luta contra o sistema racista .
No caso da família mencionada, não há como voltar atrás e desfazer o ato que já foi feito. Apagar a foto do Facebook, não irá diminuir a gravidade do ocorrido e se entristecer com as mensagens agressivas que podem sim muitas vezes ultrapassar os limites também não. Mas como prova de amor por seu filho e como prova da luta pela igualdade que afirma tentar buscar, esses pais e tantos outros pais que vivem a mesma situação, podem tentar aprender como entender as diferentes dinâmicas que o racismo é capaz de apresentar e entender também a diversidade da relação na qual estão inseridos e as particularidades da vida da criança que escolheram como filho, pois cabe a eles a responsabilidade de tentar preparar o seu filho para o futuro e as adversidades que possam vir a atingi-lo, o que inclui também como pais de crianças negras a luta diária contra o racismo.
Autor: Daniela Gomes
Foto: Reprodução de Rede Social
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